UM CONTO
Aqui me chegam informações diariamente. Nós somos um grande banco de dados. Os registros são feitos simultaneamente às ações, pensamentos e emoções que ocorrem.
Organizamos, depois, os principais eventos e guardamos as conclusões de um dia, um ano. Ao chegar aqui, quando, devidamente ordinário, se faz necessário o acesso às informações de si mesmo de toda uma vida, podem-se acessar tais informações e aproveitá-las no momento oportuno.
Comigo foi assim...
Cheguei aqui pelo ano de 1814. Assim como muitos outros, nada conhecia sobre a vida após a morte. Foi um sufoco sem igual atentar para tantos novos detalhes que fariam parte da minha vida a partir daquele momento.
Tinha muito que aprender sobre a vida e a morte. Primeiro, por um longo período, após ser resgatado, passei a dormir e a sonhar. Por muitas vezes pesadelos me assombravam e eu acordava gritando sem saber onde estava e o que acontecia. Vinham ao meu encontro, acalmavam-me e energizavam-me até, novamente, adormecer. Isso ocorreu por muitas vezes, até que, numa tarde de domingo, despertei.
Lembro que se tratava de domingo, pois gostava de reunir a família e ir em busca da palavra do Senhor. Orávamos e entoávamos cantos de louvor e saíamos com as consciências mais tranquilas e renovadas para novas atitudes, que logo as tornariam pesadas como chumbo, como haviam chegado. Não compreendíamos que era possível mantê-las sempre retas, uma vez que agíssemos de forma coerente aos ensinamentos do Senhor. Mas, muitas vezes, se fazia preciso pecar, pois, não conhecíamos outra solução.
Despertei naquela tarde enquanto louvores e clamores a Deus eram envolvidos por belas vozes que pareciam se transformar em luz. Num espetáculo que jamais pensei presenciar. Saí pela porta, antes do quarto, depois de um grande salão, onde se encontrava um grupo de religiosas que se dedicavam a Deus. Então, perceberam minha presença. Trouxeram-me uma cadeira e me permitiram ficar ali participando de tão belo evento.
Olhos abertos, apreciei a beleza daquele lugar alvo e brilhante, como um hospital, e questionei o que fazia ali. Depois, olhos fechados, entreguei-me ao radioso momento de oração. Deixei-me esquecer da vida e senti-me no céu ao lado dos anjos.
Despertei daquele momento sublime a um leve toque em meu ombro. Tratava-se de um cuidador que, descobrira, estava ao meu lado a cada despertar. Ouvia-o dizer: “Relaxe. Logo estará bem e de pé de novo. Agora deite e procure descansar.” E meu corpo relaxava por inteiro. Meus olhos fechavam-se e por mais que quisesse vencê-los, não conseguia. Culpava-me a cada despertar sobre a leve lembrança de que perdera a oportunidade de compreender o que acontecia. Mas logo ele chegava e tudo de novo ocorria numa bola de neve que jamais terminava, até aquela tarde.
Voltei ao leito com a sua ajuda, porém, desta vez, chamou-me pelo meu nome e deu- me as boas vindas. “- Gregorio, que bom está de pé. Seja bem vindo à casa do Senhor.” Imaginei que estivesse em uma instituição religiosa a me tratar e questionei do que sofria. Calmamente respondeu-me que ainda não era hora, mas em breve tudo saberia. Assim passaram-se dias e anos. Através de conversas fui descobrindo o que fazia ali.
Quando cheguei ao banco de dados fiquei impressionado. Era diferente de tudo o que já vira antes. Grandioso como uma biblioteca nacional, mas, ao mesmo tempo, pequeno e não volumoso. Desconhecia tal tecnologia que, diariamente, se renovava. A minha nova aflição era descobrir tanto quanto podia. Adorava a possibilidade de absorver todo o conhecimento e transmiti-lo através de palavras. Assim fiz por longos anos da minha vida. Porém, a liberação do meu acesso aos registros era cautelosa e fragmentada.
Primeiro, pequenas elucidações da minha vida. Depois, sobre a época que vivi. E, com o tempo e preparo, fui lidando com cada vez mais informações. No início, era difícil lidar com algumas passagens descobertas. Era preciso volver-me à meditação e aspirar calmamente possíveis soluções para algumas atitudes. Aqui, a percepção da moral e da ética se fazem plenamente, e surgem incompreensíveis momentos da vida que nos causam uma dor infinita que, pensei, muitas vezes, que jamais passaria. Nestes períodos se fazia necessário o recolhimento e o acolhimento do velho cuidador.
Sentia-me colocado no colo pela velha mãe. Cabelos brancos jogados ao vento a ninar o filho travesso que aprontara novamente e, arrependido, recorria aos seus braços a fim do perdão e limpeza da consciência aflita. Podia ficar assim por várias horas a me redimir. Quando mais calmo, as mãos maternas me conduziam ao oratório familiar, a fim de buscar o perdão do Criador.
Em minha encarnação, acostumei-me, quando maior, a escrever o ocorrido para jamais esquecer e ser realizado novamente. E assim iniciei minha vontade irresistível de transformar maus e, logo depois, também os bons atos em palavras, versos e bordões. Minha mãe ria ao ler e mostrava ao meu pai, orgulhosa das promessas de melhor conduta. Meu pai, a seu termo, vislumbrava a escrita e corrigia os pequenos erros que iam surgindo, me levando à perfeição da grafia e da concordância. Investia em minha carreira literária, fornecendo-me cada vez mais livros, cadernos e canetas, incentivando-me a escrever.
Necessitei do mesmo por aqui. Solicitei e fui atendido. E compartilhava, ainda envergonhado, dos manuscritos com meu cuidador. Tentei esconder dele, mas percebi que era inútil, uma vez que gostava de me acompanhar por longas caminhadas a envolver-se em meus pensamentos. Certa vez, sabia cada linha que planejava escrever. Logo, diante de tal fato, senti-me vencido e doei-lhe minhas primeiras anotações. Sorriu igual a minha mãe e, orgulhoso, solicitou mostrar aos seus superiores. Assim os chamava até os conhecer melhor. Traziam uma leveza no ser, espantosa, que afagava-me a alma.
Sentou-se a meu lado e iniciou a conversa com assuntos triviais. Ao alcançar as ideias sobre os rascunhos que eu fazia perguntou-me se eu não gostaria de, futuramente, publicar tal conteúdo. Explicou-me que a comunidade humana continuava a necessitar de conhecimento e que de vez em quando material pertinente era enviado para aconselhamentos e direcionamentos. Exemplificações de vidas já passadas envolviam leitores curiosos para o aprendizado a partir do outro. Fiquei realmente interessado na possibilidade que me chegava e, por algumas horas, o bombardeei com inúmeras perguntas sobre o funcionamento de algo que achava impossível. Levantei acordando material didático a partir da minha vida e concepções. Porém, como tão logo não aconteceria, propôs-me um trabalho digno, à minha escolha. No mesmo instante veio à mente conhecer todos os segredos daquela sala imponente e austera. Queria ter acesso ilimitado ao banco de dados. Expliquei-lhe que seria necessário aos escritos e vibrei com autorização e encaminhamento.
Meu entusiasmo se tornou frustação quando fui encarregado da limpeza. Olhei revoltado para o coordenador, mas de minha boca nada saiu. Já havia compreendido que naquele lugar não se atravessava pontes. Era preciso seguir o caminho adequado a cada adiantamento. Somente mais tarde conversei com meu cuidador, que gentilmente respondeu-me: “Se já conheces o funcionamento de nossas instalações, porque se aflige? Aguarda como antes aguardou e terá acesso a tudo que deseja.”
E assim aconteceu: faxineiro, arrumador, orientador, catalogador... até coordenador (o ...dor mais longe que se pode chegar quando em meu patamar: 1, 2, 3...). Cada vez mais acesso eu vou tendo e cada vez menos vou me interessando pela vida alheia. Prefiro, hoje, escrever sobre as conversas que tenho com os que aqui chegaram há muito e há pouco. Aprendi a captar em seus olhares conteúdos que jamais poderei encontrar em nenhum banco de dados. Nem mesmo no maior que já tive a oportunidade de conhecer.
Espero que não os tenha cansado com meu longo conto e espero ter permissão para retornar e lhes contar muitos outros que vivi, observei e contei.
Até lá,
Gregório.
24.01.12
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