Total de visualizações de página

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Reencontro com o mar

Mais uma linda mensagem enviada por nossa amiga Márcia Lima.




             A reunião de desobsessão estava em seus acordes finais, mas uma das médiuns ainda deixou escapar leve murmúrio, como se alguém falasse consigo mesmo: Meu Deus! Por quanto tempo ainda hei de suportar essa escuridão? Pensei que quando morresse, meus olhos se abririam e por fim eu veria o céu, as árvores, o dia. Mas tudo quanto tenho é esta escuridão.
             O lamento pacificado, pois não havia nenhuma revolta no tom vocal emitido pela médium, fez breve pausa, no que aproveitei para iniciar um diálogo.
-        Você é cego?
- Cega! Sou uma mulher e me chamo Juliana. Nasci sem ver a luz. Caminhei no mundo sempre guiada por mãos caridosas e passei para este lado sem ver as belezas da minha terra. As lembranças que guardo não têm formas  nítidas. São poemas cantados em livros, histórias que escutei das pessoas, imagens confusas que formei deslizando os dedos ansiosos pelos contornos dos objetos.
- Ouviu falar de Jesus, o médico dos desamparados? Ele curou a cegueira, a lepra, a paralisia. Quem sabe, se recorrermos a Ele não consigamos a sua cura?
- Eu sempre acreditei em Jesus. Mesmo sem ter visto a sua imagem, sei que Ele tem os olhos tristes e meigos.
             Então iniciamos a prece, ao mesmo tempo que ministrávamos o passe, na tentativa de retirar o bloqueio que obscurecia seus olhos, mesmo após o desencarne. Com a magnetização a que estava sendo submetida, sua memória abriu o dique onde o drama vivido no período negro da escravidão veio à tona, assumindo ela a personalidade de Raimundo, escravo que fora separado de sua mãe quando criança, levando consigo extrema revolta por ter visto o feitor cegar o seu pai com um ferro em brasa.
             Os amigos espirituais já haviam tentado a regressão de memória em Juliana mas ela não conseguira reviver o drama, principalmente pelo pavor que demonstrava ao perceber o mar. Quando a regressão iniciou, ela entrou em pânico: O mar! meu Deus, o mar! O navio! Essas correntes malditas! Esse cheiro horrível! Não! Não! Tirem-me daqui!
             Atingindo o núcleo de sua problemática, ela falou pausadamente, com o ranger de dentes que a revolta assume quando julga deliciar-se com a vingança.
- Aquele feitor maldito! Não bastava separar-me da minha mãe? Tinha que cegar o meu pai? Pois ele vai arrepender-se amargamente. Tudo já está planejado. Breve ele passará por aqui para  encontrar-se com as negrinhas. O bastardo vai fazer sexo com elas. Quando ele passar, eu e meus amigos vamos acertar contas com ele.
             Raimundo falava como se ninguém o escutasse. Como se misterioso transporte mágico o houvesse levado aos instantes anteriores do seu crime. Admirável livro de registros é a memória. Guarda em caracteres indeléveis os atos que comprometem ou que abonam o Espírito, servindo-lhe estes como carrascos ou como advogados em suas caminhadas futuras.
             Quando o feitor passou pelo local onde era esperado, Raimundo perfurou-lhe os olhos. Tome! Isso é pelo que você fez ao meu pai, eu o escutei dizer.
             Para não fazê-lo sofrer mais, pois já penetrara e relembrara o núcleo da sua dor, fiz com que ele retornasse à atualidade, aos sofridos anos de Juliana.
- Meu Deus! Como posso ter feito isso? Não posso ter sido tão cruel assim!
             De fato, Juliana era uma moça meiga, resignada, incapaz, na última existência na carne, de fazer mal a qualquer pessoa.
             O Espírito progride também na erraticidade. Acicatado pela consciência, essa juíza implacável que não tira férias, mesmo quando lhe amordaçam ou vendam os olhos, ele busca conselheiros que lhe orientam a caminhada, decidindo-se pelo ressarcimento das dívidas em troca da paz interior. Foi o que aconteceu com Raimundo, agora Juliana.
             Entre lágrimas ela me perguntou:
-        O mar pode ser calmo?
-        Sim. O mar pode ter ondas brandas e espumas brancas como grinaldas de noiva.
-        E pode cantar quando soprado pelo vento?
-        Claro! A música do mar é uma saudação aos navegantes.
-        Pois eu estou vendo e ouvindo a música do mar. Eu posso ir até lá?
-        Sim. Molhe os pés, rabisque na areia, junte conchas, procure uma estrela...
Ela ficou tão feliz que o rosto da médium transfigurou-se, mostrando toda a luminosidade que a alegria produz. Então, sem despedir-se, ela deixou a reunião correndo para o grande azul que a esperava.      
             Sem dúvida, ela acabara de ser resgatada e eu ganhara mais uma linda história para as minhas noites azuis.
(Livro: DOUTRINAÇÃO: DIÁLOGOS E MONÓLOGOS, Autor: LUIZ GONZAGA PINHEIRO)
--

Nenhum comentário:

Postar um comentário